No dia a dia, nos balcões BUPi, entre RGG e papeladas, as Câmaras Municipais vão ouvindo os desabafos do seu povo, devido à falta de cadastro. Fiquei particularmente tocada quando me contaram que um promotor disse: "Não sabe o que isto significa para o meu pai. Não descansou enquanto não o trouxemos ao BUPi. Ele acha que agora já pode morrer descansado porque já sabemos onde são os terrenos."
"Eu, o PRINCIPE REGENTE [1] faço saber aos que este Alvará com força de Lei virem":
[…]
[1] Futuro Dom João VI.
Neste texto preconizava-se a descentralização da execução do cadastro, sob uma orientação central, em que os ordenados dos técnicos eram pagos pelos rendimentos das Câmaras e bens dos concelhos. Ordenava-se que se desse início ao processo com um livro em que estivessem representadas, numa escala maior, as cartas de cada uma das vilas e concelhos, com a toponímia, estradas, caminhos, hidrografia, altimetria e obras de arte. Deveriam, ainda, ter outras cartas em grande escala, com as herdades, quintas, prazos, fazendas e outros bens com as suas dimensões e demarcações atuais, conforme pertencem e as possuem os seus respetivos proprietários.
Ordenava-se, ainda, que se deveria formalizar outro livro, que serviria de registo geral, em que seriam obrigatoriamente registadas as propriedades e que, sempre que cada propriedade passasse de um possuidor para outro, por título de herança, doação, compra ou qualquer outro documento de Direito e Posse, o novo possuidor seria obrigado a fazer registar o seu competente título.
Troque estes livros de mapas e registo por um sistema informático. Faz-lhe lembrar qualquer coisa? Pois é, este texto que quase podia ser de hoje, é do Alvará com força de Lei de 9 de junho de 1801… [1]
Parece que este Alvará era muito avançado para a época. Existe um artigo muito interessante, intitulado Legislação Portugueza Sobre o Cadastro, publicado no semanário A ÉPOCA, Jornal de Indústria, Sciencias, Literatura, e Bellas-Artes (nº 11 de 1848) [2], em que se refere o avanço do cadastro preconizado neste Alvará relativamente ao cadastro de outros países da Europa, eminentemente fiscal. Pela sua curiosidade, deste artigo, selecionei os seguintes excertos:
De acordo com o Conselheiro António José d'Avila, este Alvará decretava:
[1] Alvará consultado em: http://www.governodosoutros.ics.ul.pt/?menu=consulta&id_partes=110&accao=ver&pagina=740
[2] Ver em: http://hemerotecadigital.cm-lisboa.pt/periodicos/AEpoca/AEpoca.htm
De acordo com o autor, desde a fundação da nacionalidade que os sucessivos reinantes tentaram levantar os Tombos dos bens da Coroa e de outras entidades das quais o Soberano era o Protetor ou Senhor. Também era permitido aos particulares fazerem proceder ao Tombo dos seus bens.
De lá para cá muita legislação saiu sobre esta matéria. No entanto, não tem sido possível financeiramente e, até recentemente, ainda não tinha sido possível tecnicamente, associar a informação espacial, preconizada nos mapas mencionados em 1801, aos “livros” de registo das propriedades, de forma expedita, face à dinâmica territorial.
Com a generalização da utilização dos Sistemas de Informação Geográfica e a possibilidade de integração desta informação com outras soluções informáticas com informação alfanumérica, surgiu o BUPi – Balcão Único do Prédio, que materializa o Sistema de Informação Cadastral Simplificado (SICS).
Pelo conhecimento que se tinha da legislação aplicável e do BUPi, e face às entidades parceiras, das quais destaco a Direção-Geral do Território e o Instituto dos Registos e Notariado, a Câmara Municipal de Coimbra entendeu estarem reunidas as condições para que o BUPi tivesse sucesso, pelo que decidiu aderir ao BUPi, por unanimidade do Executivo Municipal.
À semelhança de Coimbra, decidiram praticamente a totalidade dos Municípios das regiões Norte e Centro de Portugal, que viram neste projeto uma oportunidade para obterem informação cadastral dos respetivos municípios. Esta “descentralização” da execução do cadastro, já preconizada há duzentos anos, só agora se está a concretizar e este é, sem dúvida, um grande desafio para o poder local.
Nestas regiões de minifúndio, há concelhos com quase 270.000 prédios (Bragança) e outros que não chegam a 5.000 (Vizela). Na frieza dos números estes concelhos com menos prédios não sairão da cauda do pelotão BUPi, mas poderão ser vencedores no seu concelho se fizerem um bom trabalho.
Devido ao BUPi, entre os técnicos das várias Câmaras Municipais, mais que a frieza dos números, o que se tem verificado é que se querem acertar procedimentos e fazer parte da solução. Sente-se o espírito de entreajuda, o sentimento de que fazemos parte de um todo, estabelecem-se redes de contactos para partilha de experiências e esclarecimento de dúvidas, fomentando-se assim novas amizades e a coesão territorial.
Por outro lado, no dia a dia, nos balcões BUPi, entre RGG e papeladas, as Câmaras Municipais vão ouvindo os desabafos do seu povo, devido à falta de cadastro. Fiquei particularmente tocada quando me contaram que um promotor disse: Não sabe o que isto significa para o meu pai. Não descansou enquanto não o trouxemos ao BUPi. Ele acha que agora já pode morrer descansado porque já sabemos onde são os terrenos.
Assim, de algum modo o BUPi também tem fomentado este contacto intergeracional, em que há conhecimento a passar para filhos e netos, que se encontram tantas vezes longe dos locais de origem e que, para participação dos seus prédios no BUPi, se revisitam fortalecendo laços familiares.
Também se tem verificado a partilha de informação cadastral, de conhecimento e de informação geográfica entre entidades privadas e públicas, que vai sendo inserida no BUPi e disponibilizada às várias Câmaras Municipais. Parece que afinal é possível ao país trabalhar em conjunto, sabendo que esta é uma oportunidade que não se deve perder.
Mas não temos só uma visão romântica do BUPi. Sabemos que se trata de um cadastro simplificado, em que haverá casos de sobreposição de partes de prédios, em que o rigor das coordenadas dos vértices das estremas dos prédios poderá não ser o que muitos desejariam, face ao seu modo de execução. No entanto, este sistema permite evoluir e para a maior parte das utilizações diárias, sobretudo de planeamento, cremos que este conhecimento inicial da localização dos prédios é essencial. Sabendo-se quem são os titulares, sempre que seja necessário, por exemplo para fins de expropriações, poderá fazer-se um levantamento topográfico dos prédios, com a presença dos titulares e dos seus confrontantes, obtendo-se um maior rigor.
É esta a abordagem que a FIG - Federação Internacional de Geómetras[1] tem vindo a preconizar para a execução de cadastro; uma abordagem flexível e pragmática, adequada aos fins a que se destina (Fit-For-Purpose), que poderá ser simplificada no início e poderá melhorar ao longo do tempo, sempre que necessário ou relevante, num processo dinâmico.
Em conclusão, devido ao BUPi criou-se uma rede de partilha de conhecimento e informação geográfica e cadastral entre várias entidades, e renovam-se afetos familiares.
Uma vez que o SICS e o BUPi, com a contribuição de todos, podem evoluir ao longo do tempo, entendemos que, de facto, poderá ser a resposta que se esperava há mais de 200 anos.
[1] FIG - A Federação Internacional de Geómetras, foi fundada em 1878 e é uma organização não governamental reconhecida pelas Nações Unidas e pelo Banco Mundial de associações membros nacionais e cobre toda a gama de campos profissionais dentro da comunidade global de geómetras. Proporciona um fórum internacional para discussão e desenvolvimento com o objetivo de promover práticas e padrões profissionais.
Boas Festas!
Virgínia Manta
Engenheira Geógrafa e Coordenadora do Balcão BUPi Coimbra